BrasilColunistasDestaqueEsportes

Por Estevam Dedalus: Garrincha, várzea e futebol arte

O que explicaria o estilo único dos brasileiros jogarem futebol? Por que no Brasil se desenvolveu uma escola futebolística que alia grande apuro técnico, competitividade e plasticidade inigualáveis em todo o mundo?

Uma hipótese bastante conhecida – herdeira do pensamento de Gilberto Freyre – atribui ao caldeamento cultural do país o sucesso do futebol. Geralmente é uma ideia que aparece associada a outros traços culturais como a musicalidade, a malandragem e a astúcia que usamos para enfrentar condições de vida desiguais e injustas.

Não estou inteiramente convencido dessa visão, mas gosto de pensar que jogamos por música. Os dribles imarcáveis de craques como Garrincha seriam versões de batuques de quintais, de salas de reboco, de frases sincopadas do samba, da malemolência e gingas da capoeira.

Os ingleses, que inventaram as regras do futebol moderno e se recusaram a participar das três primeiras Copas do Mundo, por se considerarem invencíveis – ganharam até hoje uma única taça, em 1966, com gol roubado – tentaram inadvertidamente parar Mané Garrincha com a ajuda do “método científico”.

Conta-se que, em 1962, a comissão técnica inglesa elaborou um estudo sobre os movimentos e dribles do atacante brasileiro. Ela usou um filme que ensinava aos seus defensores a melhor maneira de marcá-lo. As instruções foram repassadas exaustivamente, seguindo à risca o mais alto padrão de qualidade e pontualidade britânica.

Acho que até o MI5 – serviço secreto britânico – via o atacante brasileiro como uma ameaça comparável a Khrushchov e o arsenal atômico soviético. Eles tinham razão. Mas é claro que as “instruções robóticas” nada adiantariam no combate à genialidade de Garrincha, que marcou dois na vitória de 3×1 para o Brasil.

Os zagueiros ingleses desesperados se atrasariam nas jogadas; desconsertados estavam com a agilidade, magia e antevisão criativa do “Anjo das Pernas Tortas”. Acontecimento que entraria para a história da humanidade como uma das grandes vitórias da arte sobre a razão instrumental.

O futebol arte do “Anjo das Pernas Tortas” seria mais tarde celebrado em dois antológicos poemas de Sérgio de Castro Pinto. O trecho abaixo é de Garrincha (I):

 

quando garrincha dribla, fica.

o adversário crava

na memória

a imagem da bola

qual uma seta

no retesado arco

das pernas tortas.

 

Se dependêssemos dos europeus, o futebol seria um esporte pragmático, bárbaro e grotesco. A expressão mais estúpida, canhestra e sórdida da feiura cujo apogeu estético não passaria de um kitsch! 

Parte desse passado glorioso se deve a processo singular de formação dos jogadores brasileiros. Aos “centros de treinamentos” democráticos e populares chamados campos de várzea ou de pelada.

Muitos dos mais extraordinários jogadores de todos os tempos encenaram seus dribles em palcos como esses. Esburacados e de terra. Praticamente todos os grandes craques brasileiros jogaram nesses lugares: Pelé, Romário, Zico, Ronaldinho, Rivelino, Rivaldo, Didi, Nilton Santos, Garrincha, Chico Matemático, Dé de Jaguaribe, Léo Juruna, Dedero e tantos outros ilustres e desconhecidos artistas da bola.

Espaço que está sumindo com a expansão dos grandes centros urbanos. Quantos artistas geniais, quanta riqueza artística não está se perdendo sem o deleite e conhecimento do grande público? Ad impossibilia nemo tenetur!

Durante muito tempo a várzea demonstraria ser a melhor “categoria de base” que já possuímos. Escola em que cada geração aprendia com a anterior, repassando inestimável tesouro cultural de dribles, gingas, malícia, chutes e toques de bola.

Conhecimentos que eram aprimorados e repassados para a próxima geração, e assim por diante. Território livre, anárquico, em que cada menino é capaz de expressar sua criatividade, sem determinismos táticos, estratégias pré-fabricadas, empresários e interesses econômicos. Da arte pela arte! Estética no sentido mais sublime do termo.

 

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

Estevam Dedalus é Sociólogo e professor do IFCE.

Compartilhe este conteúdo!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *