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Por Estevam Dedalus: Nelson Cavaquinho e o Rei Salomão

Nelson Cavaquinho | SpotifyO livro de Eclesiastes é um dos meus preferidos da Bíblia. A autoria do texto é tradicionalmente atribuída a Salomão, o sábio, filho do Rei Davi com Betsabá. A relação amorosa de seus pais tem a cara de enredo hitchcockiano, sendo marcado pelo adultério e por um plano macabro de assassinato do marido de Betsabá, o soldado Urias.

Como conta o livro bíblico de Samuel, Davi ordenou que o comandante de seu exército abandonasse Urias à própria sorte na frente de batalha para que ele fosse morto pelo exército inimigo, impedindo assim que descobrisse que a sua esposa tinha engravidado de outro homem. O bebê morreria com 7 dias de vida, cumprindo uma profecia anunciada por Natã. Salomão é o segundo filho do casal Davi e Betsabá. Ele se tornaria um dos grandes reis dos judeus, sempre lembrado por sua sabedoria, riquezas materiais e por ter possuído centenas de esposas e concubinas.

Não se tem certeza de que Salomão escreveu o livro de Eclesiastes; o mais provável historiograficamente é que não tenha escrito. De toda forma, o fato de terem lhe atribuído à autoria ensejou condições propícias para que a obra fosse incluída no cânone bíblico. O que o Eclesiastes traz de mais interessante é a sua visão filosófica. Em muitos momentos, o autor do livro parece um ateu niilista, desiludido diante das agruras do mundo. A vida como descrita no livro parece não ter sentido nenhum, sendo em grande medida insípida e vã. Tudo é vaidade para o Eclesiastes: as riquezas, a sabedoria, o entusiasmo com a juventude; nada é permanente e segue o fluxo inevitável da morte.

A sua visão sobre a morte é bastante materialista. Não fala em alma, em céu ou paraíso, redenção, outra vida, ou algo parecido. A morte igualaria todas as pessoas, sejam elas quem forem: ricas, poderosas, fracas, virtuosas ou pecadoras. A impressão é que a morte levaria ao nada, quando ele diz: “(…) Os mortos nada sabem; para eles não haverá mais recompensa, e já não se tem lembrança deles”.  (Eclesiastes 9:5).

O autor do Eclesiastes é um hedonista: “Desfrute a vida com a mulher a quem você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol; todos os seus dias sem sentido! Pois essa é a sua recompensa na vida pelo seu árduo trabalho debaixo do sol.” (Eclesiastes 9:9). E ainda assevera: “O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria.” (Eclesiastes 9:10). Como o poeta árabe Omar Khayyam, “Salomão” exalta o vinho e os prazeres: “Portanto, vá, coma com prazer a sua comida, e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se agradou do que você faz.” (Eclesiastes 9:7).

Tenho sempre a sensação quando ouço os sambas de Nelson Cavaquinho que ele tem um quê dessa visão de mundo. Em especial o seu aspecto desolador, mas que ainda vê alguma saída por meio da fé em Deus. A vida é, em si, para o artista, miserável. O amor, uma certeza de sofrimento. Isso me faz lembrar de Schopenhauer: “porque é absurdo admitir que a dor sem fim, que nasce da miséria inerente à vida e enche o mundo, seja apenas um puro acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça particular parece, é certo, uma exceção, mas a desgraça geral é a regra.”

Vejam, por exemplo, esses versos da canção Eu e as Flores: Quando eu passo/ Perto das flores/ Quase elas dizem assim/ Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim/ A nossa vida é tão curta/ Estamos nesse mundo de passagem/ Ó meu grande Deus, nosso criador/ A minha vida pertence ao Senhor.

Na música Juízo Final, por sua vez, ele assume uma visão apocalíptica e utópica como forma de compensação aos martírios da existência num “futuro transcendental”: É o juízo final/ A história do bem e do mal/ Quero ter olhos pra ver/ A maldade desaparecer/ O sol há de brilhar mais uma vez/ A luz há de chegar aos corações/ O mal será queimada a semente/ O amor será eterno novamente.

Nelson Cavaquinho se incomoda com a ideia de homenagem póstuma. Os vivos sempre esquecem dos mortos, dizia, por isso cantava esses versos: Se alguém quiser fazer por mim/ Que faça agora/ Me dê as flores em vida/ O carinho, a mão amiga/ Para aliviar meus ais/ Depois que eu me chamar saudade/ Não preciso de vaidade/ Quero preces e nada mais.

Poucos tiveram a fortuna de cantar de forma tão magnífica e bela a angústia, o sofrimento e o desalento com a vida como Nelson Caquinho. O seu cancioneiro permanece vivo e atemporal como as dores invocadas pelos versos da canção Minha Fama: Quando eu morrer/ Deixarei minha fama/ Deixarei no mundo quem me ama/ As lágrimas que rolam em meu rosto/ Não sabem dizer qual é o meu desgosto/ O meu coração é uma casa de sofrimentos/ Nele que guardo todos os meus sentimentos/ Às vezes choro pra me desabafar/ Mas não digo a ninguém a causa do meu pesar.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

Estevam Dedalus é Sociólogo e professor do IFCE.

Link das musicas no Youtube a seguir:

 

 

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