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Por Estevam Dedalus: O sacrifício da carne

Inumação: tudo o que você precisa saber sobre isso - Crematório Vila AlpinaA maneira como os seres humanos lidam com a morte é algo singularmente distinto de outros animais. Isso não significa que a nossa dor seja mais profunda. Os chimpanzés, por exemplo, demonstram muito afeto por seus filhos e a morte deles costuma ser acompanhada de uma tristeza apoplética. A diferença fundamental para nós é que eles não são capazes de significar esse acontecimento; de vivê-lo para além da experiência concreta, do aqui e agora.

A variedade cultural humana e a natureza simbólica da nossa linguagem possibilitam inúmeros sentidos de viver e morrer. O antropólogo Joseph Campbell dizia que os mitos são meios que usamos para transformar as experiências em algo que coletivamente comunique um sentido.

As relações entre a morte e o mito são bastante antigas, imemoriais. De tal modo que podem ser vistas como um elemento que nos faz humanos. Essa é uma das ideias que Joseph Campbell defende no livro As transformações do mito através do tempo. Os primeiros indícios do pensamento mitológico remontam aos Neandertais e estão ligados a ritos funerais. O sepultamento entre os Neandertais era complexo. Há vestígios encontrados em cavernas-capelas nas regiões alpinas da Suíça, que mostram a adoração de crânios de ursos.

Campbell também observa que as antigas sociedades de caçadores criaram sistemas de crenças para tratar da experiência de matar com objetivo de se alimentar. O fato de que toda vida se alimenta de vida é uma das questões centrais da mitologia primitiva, uma verdade que sociedades como a nossa tendem a recalcar. Esses povos não inferiorizavam moralmente os animais que matavam.

Nessa cultura a vida dos animais é equivalente à vida humana. As pessoas precisam respeitá-los, reverenciá-los, amá-los. As suas mortes cumprem uma finalidade natural. Os animais consentiriam com a própria morte, numa espécie de imolação voluntária. Não se trata de um fim em sentido absoluto. O animal se religará à força originária materna que ordena o mundo e renascerá renovando o ciclo da vida.

É uma visão muito diferente da nossa. A tradição cultural que estamos inseridos está baseada no especismo. Acreditamos que somos moralmente superiores aos animais, e que possuímos alma. O que implicaria em privilégios que incluem a ideia de que a vida humana tem mais valor.

Nas sociedades industriais modernas pouquíssimas pessoas caçam os animais que comem. Elas compram carne em supermercados e em restaurantes. É uma experiência marcada por um enorme distanciamento. É raro as pessoas ligarem o pedaço de bife ao animal, especialmente quando ele chega ornamentado à mesa. A morte vai sendo assim apagada.

Milan Kundera dizia que, assim como a tênia é um parasita do homem, o homem é o parasita da vaca. O que faz todo sentido num mundo com um rebanho de aproximadamente um bilhão de cabeças de gado. Segundo a Bíblia, foi Deus quem encarregou os humanos de dominarem os animais. Em Gênesis, no capítulo 1 e versículo 26 podemos ler: “Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra”.

Essa é uma ideia muito poderosa, sobretudo pela natureza do argumento teológico. Em outras palavras: estaria nos planos de Deus que os homens reinassem sobre os animais. Para Milan Kundera os homens seriam gerentes do mundo, que em algum momento teriam que prestar conta da sua gestão. O certo é que essa concepção legitimaria a dominação humana sobre a natureza, fundada numa hierarquia moral de caráter divino.

É uma concepção mitológica distinta das culturas que veem a natureza e os animais como sagrados e iguais a nós; que casa muito bem com as sociedades estruturadas a partir de classes sociais e com a ideologia capitalista. A vida e a morte são ditadas pelo poder do mais forte.

 

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

Estevam Dedalus é Sociólogo e professor do IFCE.

 

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