Por Estevam Dedalus: Raul seixas e o anarquismo
Em 1983 Raul Seixas acumulava problemas com drogas e depressão. Sua carreira estava ameaçada. Ele era um artista único que reunia, ao mesmo tempo, uma visão política mordaz e bem-humorada. Uma figura carismática, irreverente, anárquica, envolta pelo ocultismo místico. O que desde sempre incomodou o Regime Militar e que parecia não mais interessar as gravadoras no início dos anos oitenta. A sorte começou a virar depois que Raul recebeu uma proposta da Eldorado para fazer um novo disco, e um convite da Rede Globo para participar do especial infantil Plunct, Plact, Zuuum.
Raul aceitou. O que resultou no álbum Raul Seixas, que ele mesmo classificou na ocasião como o menos metafísico e filosófico de sua discografia; e na criação da música Carimbador Maluco. Esse foi um dos grandes sucessos daquele ano, vindo a se tornar um clássico do nosso cancioneiro infantil. A canção seria interpretada por Raul no especial infantil da Rede Globo e também numa apresentação apoteótica no estádio do Maracanã, ao lado do Balão Mágico e dos Trapalhões, no programa de Natal da emissora.
O que poucos brasileiros que já cantaram essa música sabem é que a letra foi inspirada no anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon. Em entrevista a Marília Gabriela, Raul falou como surgiu a canção: “Me deram um papel em branco, texto né? Eu fiz em cima. Saiu… Tem uma coisa de Proudhon… (para o filósofo) ser governado é ser legislado a cada minuto, ser cobrado, tarifado, pesado, rotulado. Tem um pouquinho de coisa anárquica aí no meio pra fazer a cabeça das crianças.”
A letra da canção segue a mesma lógica da resposta proudhoniana à pergunta: o que é ser governado? O eu-lírico diz: Tem que ser selado, registrado, carimbado/ Avaliado e rotulado se quiser voar/ Se quiser voar/ Pra lua, a taxa é alta/ Pro sol, identidade/ Mas já pro seu foguete viajar pelo universo/ É preciso o meu carimbo dando sim, sim, sim, sim. Pluct, Plact, Zummm/ Não vai a lugar nenhum.
Proudhon dizia que “o governo do homem é a servidão”. E ainda acrescentava: “Quem quer que coloque sobre mim para me governar é um tirano e eu declaro-o inimigo”. Raul declararia o sistema como seu inimigo ao fazer um “atentado semiótico” a uma indústria cultural que esvazia o potencial transformador da arte com a padronização das músicas e dos artistas numa lógica de mercado baseada na produção em massa de bens culturais.
O interessante é que Raul fez esse ataque estando dentro da própria indústria cultural. Poucos artistas seriam capazes de compor uma canção infantil com linguagem pop e discurso anarquista para um programa de televisão e cantada em todo país durante a ditadura militar.
Max Stirner, o célebre filósofo anarquista alemão, certa vez declarou: “Não procureis na renúncia a vós próprio, uma liberdade que vos prive exatamente de vós próprio, mas tentei encontrar a vós mesmos… Que cada um de nós seja um Eu todo poderoso.” Stirner afirmou ainda: “Não há mais nenhum outro juiz de mim mesmo, senão eu próprio, o único a decidir se tenho ou não razão.”
Recentemente me ocorreu que essa ideia é muito parecida com a Lei de Thelema, que Raul conheceu através do ocultista inglês Aleister Crowley. A Lei de Thelema diz: “Faze o que tu queres!”, num reconhecimento explicito da liberdade e do direito de autodeterminação individual. Ela foi cantada por Raul na música Sociedade Alternativa: “Faça o que tu queres, pois é tudo da lei, da lei…”
A verve iconoclasta de Raul alimentava um ranço à autoridade e à idolatria, algo típico ao espírito libertário. Ele conta que depois do sucesso de Gita se viu descontente com a tentativa de fazê-lo um guru espiritual: “Eu era anunciado na Revista Planeta, na primeira capa: ‘compre esse disco, Gita, que você vai descobrir o segredo do universo’. Aí já começou a ficar perigoso pra mim a coisa… Vinham mães, senhoras com crianças aleijadas, que as estendiam 3 metros de altura até o palco pra eu dar um beijo e a criança ficar boa, sabe?… Foi terrível pra mim aquilo. Eu não sou líder de coisa nenhuma. Eu sou individualista mesmo. Eu sou egoísta, no bom sentido. Sou raulseixista mesmo. Nunca pertenci a grupo nenhum…”
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.
Estevam Dedalus é Sociólogo e professor do IFCE.
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